Memórias de um Tenente sem Malícias
Conto do Enos, primeiro colocado em concurso promovido pelo Círculo Literário do Clube Naval
Elmo saiu do banheiro, vestiu o pijama azul e foi direto para a cama. Colocou dois travesseiros nas costas e se recostou na
cabeceira, como era de hábito, para continuar a leitura de um velho livro, iniciada há duas semanas. Era uma forma de esperar o
sono que geralmente só chegava depois das vinte e três horas. Alguns minutos depois a companheira de cinquenta e dois anos deita-se
ao seu lado, reclamando pelo travesseiro, deixando Elmo menos confortável. Ele não demora e logo puxa conversa:
- Preciso escrever um livro, e já escolhi o título.
- Um livro! Sobre o quê? - Exclamou Joyce, demonstrando surpresa.
- Um livro de memórias - Respondeu Elmo, e continuou:
- O título será: “Memórias de um Tenente sem Malícias”.
Joyce saiu do sério e soltou uma larga e sonora gargalhada, como se acabasse de ouvir uma piada de Jô Soares.
- Na sua idade não dá mais para escrever um livro de memórias e sim de leves lembranças. E por que esse título, um tenente sem
malícias se você é um comandante?
Elmo percebeu que Joyce não estava criticando a ideia de escrever um livro, mas sim um livro de memórias, pois sabia que o
marido não tinha guardado nenhuma anotação, nenhuma foto ou qualquer documento do tempo em que por mais de trinta anos serviu à
Marinha, além de uma velha Caderneta de Registro e outra de Pagamentos, bem como alguns diplomas e certificados de conclusão de
cursos. Por isso acabou rindo com ela e respondeu:
- Escuta, um sargento de milícias não escreveu suas memórias? E por que um tenente não pode escrever as suas?
- Mas não foi o sargento que escreveu e sim Manuel Antônio de Almeida. Eu li esse livro duas vezes.
-Tudo bem, e eu vou escrever minhas memórias sim. Já plantei muitas árvores, não tive mais de dois filhos por culpa da camisinha
e para ser um homem com H maiúsculo só me resta escrever um livro, é o que dizem.
E seguiu-se outra risada de Joyce que foi completando:
- Tá bom, mas como disse, por que “Memórias de um tenente sem malícias” se você é um comandante?
- É aí que começa a malícia. E continuou: - Trabalhou comigo uma funcionária muito humilde, encarregada da limpeza dos banheiros
femininos, a quem eu tratava com muito respeito, sempre que ela a mim se dirigia. Eu era tenente, primeiro tenente, quando a
conheci; depois fui promovido a capitão-tenente e você sabe que na Marinha o capitão é tratado por tenente, exceto os Fuzileiros,
que são tratados corretamente, como no Exército, por Capitães. Então, durante seis anos ela me chamava de tenente. Cara de garoto,
fui promovido a Corveta e cheguei a Fragata e ela não se habitou a me chamar de Comandante e sempre que me via, depois que deixei a
Diretoria de Administração, corria para falar comigo me tratando sempre de tenente e logo pedindo desculpas. Penso que se chegasse
a almirante ela continuaria me chamando de tenente Elmo. O título será uma homenagem e essa senhora que eu nem sei se ainda vive.
Joyce agora estava séria, mostrando algumas rugas entre os olhos que a todo custo tentava esconder. Fitou o marido bem nos olhos
e perguntou:
- O título você já tem, e o resto?
- Você sabia que qualquer marinheiro com mais de trinta anos na Marinha tem muita história pra contar?
- Acredito, muita história envolvendo mulher, uma em cada porto...
-Talvez isso, mas muito mais. Uma vida inteira de companheirismo, amizades, aprendizado, trabalhos às vezes árduos, viagens,
saudades, dedicação, desconforto, pressões, alegrias e tristezas, mas sobretudo uma vida de muito amor à Marinha e à Pátria.
Eu, até hoje, vez por outra, sonho que ainda estou na ativa e, devidamente uniformizado, me vejo trabalhando lá. Sinto falta
daquele cheirinho do mar.
- Imagino, pois você continua acordando às seis da madrugada, parece que escuta o toque de alvorada diariamente, até nos
domingos! Mas você não se lembra do que comeu ontem no almoço, nem da roupa que vestia e vive trocando os nomes dos dois
filhos, como vai se lembrar de fatos ocorridos há mais de sessenta anos?
- Ah! Aí é que está, me lembro de todos os fatos mais marcantes, nos mínimos detalhes, desde quando estava me preparando para o
concurso do Colégio Naval! Você sabe que realmente sempre tive dificuldades para guardar nomes de pessoas, e até já passei
vergonha por isso, porém as coisas mais importantes, ou engraçadas, aquelas que de alguma forma marcam alguns períodos de
nossas vidas, dessas ninguém jamais se esquece.
Joyce mudou de posição na cama, puxando as cobertas para cobrir seu corpo, enquanto Elmo continuava, agora com o tronco mais
distendido, olhando para o teto, como se nele estivesse sendo projetado um filme que começou a ser rodado lá pelos anos cinquenta,
precisamente em cinquenta e quatro, quando ingressou no Curso Tamandaré; e sem olhar para os lados, continuou:
- Mas eu não pretendo citar nomes, por dois motivos: omitir alguns e cometer injustiças ou citá-los e arrumar problemas para
mim e para eles, pois alguns fatos poderão ser comprometedores. No máximo vou usar cognomes, mesmo sabendo que os envolvidos
poderão ser identificados, por eles mesmos e também por outros companheiros.
- Acho que você vai é arrumar encrencas depois de velho, balbuciou Joyce, já com os olhos fechados, quase pegando no sono.
- Você se lembra da nossa lua de mel?
Joyce arregalou os olhos e virou o rosto olhando firme para o marido, imaginando que alguma cachorrada viria por aí, relembrando
ele de coisas que aconteceram há mais de cinquenta anos e das quais vive hoje apenas de saudades. Mas Elmo prosseguiu:
- Eu me lembro bem. Parece que foi ontem, você tentava preparar um almoço num fogareiro improvisado, uma vez que o botijão de
gás não foi entregue a tempo. Morávamos lá no Grajaú, o dinheiro de tenente de família pobre que não casou com mulher rica não
dava nem para sair do Rio de Janeiro...
- Mas casamos com apartamento montado, com geladeira, televisão e outros eletrodomésticos, tudo pago e sem nenhuma dívida. -
Arrematou Joyce como que perdoando o marido pelo fato de não terem viajado como recém-casados.
- É verdade, mas o que eu estava dizendo é que, de repente, tocou a campainha, fui atender pensando que fosse a entrega do gás
e estava lá, na minha frente, aquele negão vestido de naval, me avisando que a Marinha estava em prontidão rigorosa e que o
meu comandante me dava ordem para me apresentar em 24 horas. Ainda lembro que disse a ele que estava de férias e em lua de
mel e que avisasse ao chefe que no dia seguinte me apresentaria. E assim o fiz, deixei você na casa de meus pais e passei o
resto da minha lua de mel abraçado a um fuzil lá na Ilha do Governador, sem saber quem era o meu inimigo...
- Disso eu me lembro, maldito 31 de março...não, foi justo no 1º de abril, você foi para a guerra e eu fui para a casa de seus
pais; e não adiantou nada, os “inimigos” estão hoje governando o país, concluiu Joyce quase dormindo.
- Então, são coisas assim que vou narrar em meu livro. - Disse Elmo, já quase pregando os olhos.
Olhar fixo no teto do quarto, Elmo parecia assistir a projeções de fatos ocorridos em sua vida ao longo de mais de três décadas
vividas na Marinha. No Colégio Naval, na Escola Naval, no Custódio de Melo, no Corpo de Fuzileiros Navais, no Cruzador Tamandaré,
no HNNF, na antiga DIM, no Gabinete do Ministro no Rio e em Brasília, no Depósito de Sobressalentes do Rio, no Comench, na Diretoria
de Administração da Marinha e no Arsenal de Marinha, já na Reserva. Muita história para ser escrita, sendo projetada no teto do
quarto do velho comandante!
Em plena Sede Social do Clube Naval, no Rio de Janeiro, detrás de uma mesa de tamanho médio, colocada no fundo de um imenso salão,
fartamente iluminado, Elmo se esmerava em autografar dedicatórias em sua primeira obra literária. E com orgulho contemplava a longa
fila que se formara de amigos, companheiros de turma que como ele teimavam em se manter vivos, raros antigos chefes, muitos leitores
desconhecidos e, para sua surpresa, quase no final da fila, uma senhora negra, bem idosa, cabelos branquinhos, que amparada por duas
filhas segurava apertando contra os seios um exemplar do seu livro. Emocionado, Elmo levantou-se e em passos largos se dirigiu ao
fim da fila recebendo um sonoro “Tenente Elmo !”. Durante alguns segundos os dois se abraçaram e foram às lágrimas. A cena se
desfez porque alguém tocou no ombro de Elmo sacudindo-o com força:
- Não vai levantar hoje? São sete horas e o café está na mesa. Porventura não ouviu o toque de alvorada? - Era Joyce despertando o
marido e, sem querer, interrompendo o mais belo sonho de sua vida...
ARTISTAS PLÁSTICOS
- Bernardi
- Maria Apparecida (esposa do Rodrigues)
Bernardi - uma rara oportunidade para apreciar a apurada técnica e a aguda sensibilidade do artista.
Maria Apparecida Lopes do Amaral, alem de cantar maviosamente e ter casado com o nosso estimado colega Rodrigues, tambem produz
obras de arte pintando em porcelana. Admirem abaixo uma amostra de seu trabalho.
Escritores
Poesias
Barbosa Araujo (Pururu)
Barbosa Brotto - Regata no Sábado
Poesias Carlos Castellar (Antunes) - Fantasia / Confissão / Dúvida / Saudade
Poesias Couto Netto - Pessoas Ondas
Poesias Netto dos Reis - Poema do Amor Eterno / Ressurgência
Poesias Poeck - O Embate do Temporal
Poesias Poeck - Noturnas Borboletas de Veludo
Poesias Ronaldo Netto dos Reys - Poemas da Nova Fase
Poesias Tangari - Uma Lágrima
Crônicas & Contos Cronicas
Cronicas Annibal - O Grande Almoço e O Marujo da Perna de Pau
Cronicas Carlos Castellar (Antunes) - Conto Erótico
Cronicas Carlos Castellar (Antunes) - Uma História da Vida
Cronicas Carlos Castellar (Antunes) - Casa da Felicidade
Cronicas Netto dos Reys - Tom: "Le Mot"
Cronicas Ney Dantas - Heterodoxo Enlace e Sonho Marinheiro
Cronicas Ney Dantas - Saudoso de Paquetá e Impudente Mascate
Cronicas Ney Dantas - A Guerra de Palavras
Cronicas Roberto de Oliveira - O Cemitério Maldito
Cronicas She - Penedo
Romances & Memórias
Memorias Annibal - João Cândido
Memorias Annibal - Nos Bastidores da Torcida
Memorias Barroso - Inverno de 2004
Memorias Barroso - Inverno de 2005
Memorias Boavista - Perigoso Agente Secreto
Memorias Brandão - A Mala Marrom
Memorias Gilberto Pereira - Nasce a Turma Elmo
Memorias Monteiro - Memórias do Último Governador Militar de Fernando de Noronha
Memorias Roberto de Oliveira - Quem Matou Nicanor?